sábado, 14 de julho de 2012

Retornando...


Após longo período sem atualização, retomamos a ativar o nosso blog. Reiniciamos com a proposta de publicar (ou republicar) textos ácratas extraídos de antigos jornais anarquistas publicados no Brasil. Textos retirados de jornais como "A Terra Livre", "A Guerra Social", "A Plebe", "A Lanterna", "Ação Direta", entre outros, visamos com isso divulgar as ideias que os militantes anarquistas antepassados acreditavam e divulgavam, suas propostas, denúncias e doutrinas. Iniciamos com artigos de militantes clássicos como Kropotkin, Faure, Proudhon e Reclus. Além de autores clássicos, visamos também publicar textos de militantes libertários que atuaram em território brasileiro. Segue os textos: boa leitura e reflexão !

                                                                            “A Ordem



Os que acusam a anarquia de ser a negação da ordem, não falam da harmonia do futuro; falam da ordem como ela é concebida na sociedade atual.
Atualmente, a ordem – o que eles entendem por ordem – são os nove décimos da humanidade trabalhando para procurar o luxo, os gozos, a satisfação das paixões mais execráveis, para um punhado de mandriões.
A ordem é a privação para estes nove décimos, de tudo que é a condição necessária de uma vida higiênica, de um desenvolvimento das faculdades intelectuais. Reduzir nove décimos da humanidade a um estado de bestas de carga, vivendo dia a dia, sem nunca se atrever a pensar nos gozos dados ao homem pelo estudo das ciências, pela criação artística – eis a ordem.
A ordem é a fome e a miséria tornadas em estado normal da sociedade. É o aldeão irlandês morrendo de fome; é o aldeão dum terço da Rússia morrendo de difteria, de tifo, de penúria, no meio dos montões de cereais que vão para o estrangeiro. É o povo da Itália deixando o seu campo luxuriante, para vaguear pela Europa, procurando um buraco onde vegete na miséria. É a terra roubada ao camponês, para criação de gado, que servirá para alimentar os ricos; é a terra deixada inculta, de preferência a ser restituída para aquele que não pede mais do que cultivá-la.
A ordem é a mulher que se vende para dar alimento aos filhos, é a criança reduzida a ser encerrada numa fábrica, ou a morrer de inanição, é o operário reduzido ao estado de máquina.
É o fantasma do operário revoltado às portas dos ricos, o fantasma do povo revoltado às portas dos governantes.
A ordem é a minoria ínfima, subida às cadeiras governamentais, que se impõe por esta razão à maioria e que educa os filhos para exercerem mais tarde as mesmas funções, a fim de manter os mesmos privilégios, pela astúcia, pela corrupção, pela força, pelo morticínio.
A ordem é a guerra constante do homem ao homem, de ofício à ofício, de classe à classe, de nação à nação.
É o canhão que não cessa de roncar na Europa, é a devastação dos campos, o sacrifício de gerações inteiras nos campos de batalha, a destruição em um ano de riquezas acumuladas em séculos de trabalho rude.
A ordem é a servidão, o pensamento acorrentado, o envilecimento da raça humana, mantido pelo ferro e pelo chicote. É a morte repentina, pelo grisu, de centenas de mineiros despedaçados ou enterrados todos os anos pela cobiça dos patrões, e metralhados, desde que se atrevam a queixar-se.
A ordem, enfim, é o afogamento em sangue da Comuna de Paris. É a morte de trinta e cinco mil homens, mulheres e crianças, maltratados, enterrados com cal viva nas ruas de Paris.
É o destino da mocidade russa, nas prisões, enterrada no gelo da Sibéria e onde os melhores, os mais puros, os mais dedicados, morrem enforcados.
Eis a ordem.

Piotr Kropotkin

Retirado do periódico anarquista ‘A Terra Livre’ (São Paulo), 12 de Abril de 1906, número 7, página 1, & também do ‘Boletim da Federação Operária do Estado Rio de Janeiro’, Setembro de 1921, número 7, página 3. Publicado originalmente no livro ‘Palavras De Um Revoltado’ (‘Paroles D’Un Révolté’), 1885.


O que nós queremos



Milhões de seres humanos trabalham dez ou doze horas diárias, em odiosas condições em troca de um salário insuficiente.
Milhões de velhos que, durante uns vinte e cinco, trinta e quarenta anos laboriosamente têm formado a riqueza pública e edificado fortunas particulares, estendem as mãos calosas e descarnadas aos transeuntes, ou solicitam a sua entrada para os asilos.      
Milhões de crianças encantadoras e inocentes que precisam do alimento e da cultura indispensáveis.
Milhões de mulheres belas feitas para provocar e gozar o amor procuram no tráfico vergonhoso da sua carne o pão que lhes é necessário.
Milhões de seres vigorosos e belos em vão procuram trabalho e, sem o encontrar, morrem na miséria.
Milhões de jovens são arrancados ao campo, à oficina, à família e aos seus amores, na previsão de matanças incompreensíveis e criminosas.
Milhões de desgraçados aquém a miséria, a ignorância e a opressão forçam fatalmente a infringir a lei feita contra eles gemem nos cárceres e nos presídios.
Toda a pessoa inteligente e de coração deve querer que isto termine.
Intrigantes e ambiciosos, investidos de um mandato pela candidez popular, farsantes e imbecis revestidos de uma função pela complacência governamental, saqueiam, as mãos cheias e sujas, o tesouro público alimentado pelos trabalhadores.
Os ministros de um Deus ridículo apóiam sobre o abandono dos dogmas e a metafísica religiosa, o domínio de uma classe e os privilégios que a acompanham.
Na sua ignorância e no seu hábito de servidão, as multidões aclamam os que as esmagam e exploram; inclinam-se respeitosas ante os grandes que as desprezam ou as adulam e seguem passivamente os conselhos dos anestesiadores e dos que pregam a resignação.
Todos os espíritos emancipados e todos os corações generosos desejam que isto tenha um fim.
Viver, ser ditosos, ser livres... Eis aqui o que nós queremos.
Gozar o bem estar físico assegurado por uma alimentação sã e abundante, boa roupa e uma habitação confortável.
Cultivar a nossa inteligência, desenvolver os nossos conhecimentos, enriquecer o nosso cérebro com novas verdades, regozijar os nossos olhos na contemplação das grandes obras de arte e da natureza, deliciar os nossos ouvidos com o encanto das puras harmonias, estudar com espírito independente os problemas da vida, passear livremente a nossa curiosidade através do mundo das realidades e das observações, pensar o que nos inspira a nossa razão ilustrada e confiar a nossa intrépida língua a expressão sincera do pensamento.                    
Eis aqui o que nós queremos!
E queremos também fundar o mais breve possível um meio social favorável ao desenvolvimento integral da personalidade humana, pelo livre exercício das forças que em nós se agitam e das paixões que nos movem, pelo desenvolvimento moral das nossas afinidades, pela nobre irradiação das nossas simpatias.
É necessário pedir à vida todas as alegrias que ela contém.
Eu sei bem que querer e proclamar isto é expormo-nos a ser tratados como malfeitores.
Que importa!
Propagadores voluntários de uma ideia justa e bela consideramos sem desfalecimentos as consequências da batalha, sendo para nós mais penoso ficar inativos no seio da peleja que correr os riscos próprios da luta.
Se é ser malfeitor querer o fim da miséria, da ignorância e das guerras; se é ser malfeitor preparar o advento de uma sociedade de concórdia, de saber, de abundância e de harmonia, nós somos malfeitores, aceitamos o epíteto e reivindicamo-lo com orgulhosa dignidade.
Abandonem os adversários a esperança de nos desarmar; não somos daqueles a quem se intimida nem a quem se corrompe.
O espírito de independência desenvolve-se e fortifica-se no seio das novas gerações; um sopro de emancipação começa a dar vida a este deserto. O escravo quer conquistar o seu lugar de homem livre. Certamente queremos ser ditosos, mas, pois que é possível, queremos que o sejam todos, porque não poderíamos rir quando os outros choram, cantar quando os outros gemem.
Eis aqui o que nós queremos, com todo o poder da nossa firmeza, com toda a energia da nossa perseverança.
Também o que queres, tu, que me lês? Queres viver, ser ditoso, ser livre? Queres que cada um seja livre, ditoso e que viva?... Sim? – Pois bem, depende de ti, de mim, de todos nós, que esta magnífica aspiração se converta em realidade. Se o queres resoluta e lealmente, despede-te, abandona, se preciso for, família, amizade, posições; foge da atmosfera pestilenta das igrejas, dos quartéis, dos parlamentos, e vem, vem combater livremente no meio dos homens livres.

                                                                                                                    Sébastien Faure

Retirado do periódico anarquista ‘A Guerra Social’ (Rio de Janeiro), 14 de Setembro de 1912, número 27, página 3, & também do periódico anarquista ‘A Revolta!’ (Santos), 14 de Novembro de 1913, número 5, página 1.


O que não queremos


           
Não queremos Estado porque o Estado, pseudo-mandatário é servidor do povo, por procuração geral e ilimitada dos eleitores, mal nasce logo cria para si um interesse a parte, muitas vezes contrário ao interesse do povo; porque, servindo esse interesse, faz dos funcionários públicos criaturas suas, resultando daqui o nepotismo, a corrupção, e pouco a pouco a formação duma casta oficial, tão inimiga do trabalho como da liberdade... 
Não queremos Estado porque o Estado, para engrandecer o seu poder extrapopular, tende a multiplicar indefinidamente os seus empregados; depois, para se os prender cada vez mais, a aumentar-lhes continuamente os vencimentos...
Não queremos Estado porque, quando o imposto já não basta as suas dilapidações, ao desempenho dos seus favores e sinecuras, o Estado recorre aos empréstimos e desfalques, e depois de ter empalmado o dinheiro alheio, ainda acha meio de obter aplauso para as suas rapinas...
Não queremos Estado, porque desejaríamos limpar a sociedade de tudo o que se chama bancarroteiros, usurários, abutres, agiotas, ladrões, gatunos, estelionatários, concessionários, falsários, moedeiros falsos, prestímanos, parasitas, hipócritas e homens de Estado; porque a nosso ver todos os homens de Estado se assemelham e todos são, com gradações, comedores de carne humana, no dizer Catão.

Pierre-Joseph  Proudhon

Retirado do periódico anarquista ‘A Guerra Social’ (Rio de Janeiro), 14 de Setembro de 1912, número 27, página 3


Élisée Reclus Fala aos Jovens

           
Queridos camaradas:

Temos, em geral, o costume de exagerar tanto nossa força quanto nossa debilidade; assim, durante épocas revolucionárias, nos parece que o menor de nossos atos deva ter consequências incalculáveis e, ao contrário, em certo marasmo, toda a nossa vida, ainda que consagrada inteiramente ao trabalho, nos parece infecunda e inútil.
Que devemos fazer então para mantermo-nos em estado de vigor intelectual, de atividade moral e de fé no bom combate?
Dirigi-vos a mim, porque supondes que tenho experiência dos homens e das coisas.
Pois bem, em minha qualidade de ancião, me dirijo aos jovens para dizer-lhes:
Fora as querelas e personalismos. Escutai os argumentos contrários depois de haver expostos os vossos; sabei calar e refletir; não procureis ter razão em detrimento da vossa sinceridade.
Estudai com discernimento e perseverança. O entusiasmo e a abnegação, ainda que até a morte, não são o único meio de servir a causa. É fácil dar a vida; nem sempre fácil conduzirmo-nos de modo que nossa vida sirva de exemplo. O revolucionário consciente não é somente homem de sentimento, é também homem de raciocínio, cujos esforços totais em procura de maior justiça e solidariedade se apóiam sobre conhecimentos exatos e sintéticos de história, sociologia, biologia. É o que pode, por assim dizer, incorporar suas ideias pessoais ao conjunto genérico das ciências humanas e enfrentar a luta sustentado pela imensa força que esgotará em seus conhecimentos.
Evitai as classificações; acima de partidos e pátrias, de proclamar-vos russo, polaco ou eslavo, sede homens ávidos de conhecer a verdade, despojados de todo pensamento de interesse, de toda ideia de especulação ante chineses, africanos ou europeus; o patriota chega a detestar o estrangeiro, a perder o sentimento de justiça que alimenta seu mais puro entusiasmo.
Não vos atreleis a patrão, chefe ou apostolo cuja linguagem seja considerada palavra do Evangelho; fugi dos ídolos e não busqueis mais que a verdade de quando diga o amigo mais querido ou do professor mais sábio. Se, escutando-o conservais alguma dúvida, buscai em vossa consciência e recomeçai o exame para julgar em última instância.
Refugai, pois, toda autoridade, para cingir-vos ao respeito profundo de uma convicção sincera, vivei a própria vida, porem reconhecei a cada um inteira liberdade de viver a própria.
Se vós lançais a luta para vos sacrificardes em defesa dos humilhados e ofendidos, em boa hora, companheiros, afrontai nobremente a morte. Se preferes o lento e paciente trabalho ansiando por melhor provir, melhor ainda convertei-vos no objeto de cada um dos instantes de vida generosa. Porém, se escolheis a pobreza entre os pobres, em completa solidariedade com os que sofrem, que vossa existência irradie a claridade benfeitora, no exemplo perfeito e no fecundo ensinamento.            

                    Saúde, camaradas!

Retirado do periódico anarquista Ação Direta (Rio de Janeiro) –– Outubro e Novembro de 1952, nº83, ano 6, p. 3.