quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Luta de Classes Ou Ódio Entre As Classes ?

Esse texto pouco conhecido do ilustre anarquista italiano Errico Malatesta (1853-1932), aborda sua visão sobre a questão operária e a luta de classes, diferenciando essa do ódio entre as classes sociais. Esse artigo causou muita polêmica na época em que foi escrito e, sendo ainda hoje, uma questão que causa muita discussão nos meios libertários, talvez ajude no debate atual sobre esse assunto. Leiam & Reflitam & Comentem !!!

"Povo & Proletariado – Luta de classes ou ódio entre as classes?"


 ERRICO MALATESTA

Eu pronunciei, na presença dos juízes de Milão, algumas palavras sobre a luta de classes e sobre o proletariado, palavras que tiveram a virtude de suscitar críticas e exclamações. Acho conveniente dizer mais alguma coisa sobre o assunto.
No tribunal protestei indignadamente contra a acusação que me faziam de “eu ter incitado o povo ao ódio”. Expliquei, então como na propaganda das minhas idéias tinha procurado sempre demonstrar que os males sociais não dependem da malvadez deste ou daquele patrão, deste ou daquele governante, mas sim da instituição do próprio patronato e do governo, e que, portanto, não se podem remediar os males mudando as pessoas dos dominadores – o que é necessário é destruir o principio da dominação do homem pelo homem. Afirmei também que sempre tinha insistido no fato de que, pessoalmente, os proletários não são melhores do que os burgueses. E a prova é que quando por qualquer circunstância um operário consegue atingir uma posição de riqueza e de mando, se conduz geralmente como um burguês ordinário e dos piores.
Essas declarações foram adulteradas, confundidas e publicadas na imprensa burguesa; e compreende-se muito bem que assim tinha sucedido. A imprensa subvencionada para defender os interesses da política e dos tubarões tem por dever de ofício de esconder a verdadeira natureza do anarquismo, dando credito à lenda do anarquismo odiento e destruidor. E faz isto por exigências do ofício. Devemos convir, porém, que amiúde procede assim, de boa fé, por pura e simples ignorância. Desde que o jornalismo, que foi um sacerdócio, passou à condição de indústria e de ofício, os jornalistas não só perderam o senso moral como também a honestidade intelectual, que consiste em não se falar daquilo que não se sabe.
Deixemos, porém, os venais no lodo e falemos daqueles que, embora divirjam de nós nas idéias e, freqüentemente, só no modo de exprimi-las, são os nossos amigos porque caminham para o mesmo fim que nós caminhamos.
Nestes indivíduos a estupefação é completamente injustificada até ao ponto, que não me repugna acreditar, de julgá-la afetada. Eles não podem ignorar que eu venho dizendo e escrevendo estas coisas há cinqüenta anos; e que, comigo e antes de mim, as disseram e repetiram centenas e milhares de anarquistas.
Mas vamos ao desacordo. Existem os ‘proletários’, isto é, os operários que julgam que pelo fato de terem calos nas mãos, isso significa uma divina infusão de todos os méritos e de todas as virtudes, e que protestam, se alguém tiver o atrevimento de falar do povo e de humanidade, esquecendo-se de jurar sobre o sagrado nome do proletariado.
É verdade que a história fez do proletariado o instrumento principal da próxima transformação social. Assim, aqueles que lutam pelo advento duma sociedade na qual todos seres humanos sejam livres e tenham assegurados os meios para exercer a liberdade, devem apoiar-se principalmente no proletariado.
Visto que o equiparamento das riquezas naturais e do capital, produzidos pelo trabalho das gerações passadas e presentes, é hoje a causa principal da sujeição das massas e de todos os males sociais, é natural que, aqueles que nada possuem, sejam os que, em conseqüência de sua miséria, se sintam mais direta e evidentemente interessados em que se ponham em comum os meios de produção, constituindo assim os agentes naturais da exploração. É por isso que dirigimos a nossa propaganda muito especialmente aos proletários e aqueles que, pelas condições em que se encontram, não tem possibilidades de chegar por si próprios – por meio da reflexão e do estudo – a conceber um ideal superior. Mas, para isto, não é necessário fazer do pobre um fetiche, pelo simples fato dele ser pobre, nem alentar nele a crença de que é duma essência superior, nem que, por uma condição que não é certamente fruto do seu mérito nem da sua vontade, tenha conquistado o direito de fazer aos outros o mal que os outros lhe tenham feito. A tirania das mãos calejadas (que, na prática, é sempre a tirania de uns poucos que, se alguma vez tiveram calos, os deixaram desaparecer) não será menos dura, menos ignominiosa, menos fecunda em males duradouros, do que a tirania das mãos enluvadas. O que ela será é menos ilustrada e mais dura: eis tudo.
A miséria não seria tão horrível como é, se além dos males materiais e da degradação física, não produzisse também, ao prolongar-se de geração em geração o embrutecimento moral. E os pobres têm vícios distintos que não são melhores que os que o poder e a riqueza ocasionam nas classes privilegiadas.
Se a burguesia produz os Giolitti, os Graziani e toda a cumprida série de tiranos da humanidade, desde os grandes conquistadores até os pequenos patrões ambiciosos e usuários, produz também os Reclus, os Cafiero, os Kropotkine e tantos outros que em todas as épocas, tem sacrificado os seus privilégios de classe em homenagem a um ideal. Se o proletariado tem dado e continua a dar tantos heróis e tantos mártires à causa da redenção humana, dá também os guardas brancos, os assassinos, os traidores aos próprios irmãos sem os quais a tirania burguesa não poderia durar um único dia.
Como, pois, se pode elevar o ódio a princípio de justiça, a iluminado sentimento de reivindicação, quando é evidente que o mal está em toda a parte e depende de causas alheias a vontade e a responsabilidade individual?
Faz-se quanta luta de classes, se quiser, se por luta de classe se entende a luta dos exploradores a fim de abolir a exploração. Ela é um meio de elevação moral e material e a principal força revolucionária com que hoje se pode contar. Mas propagandear o ódio não, porque do ódio não podem brotar o amor e a justiça. Do ódio nascem a vingança, o desejo de imperar sobre o inimigo, a necessidade de consolidar a própria superioridade. Com o ódio se obtém um triunfo, podem-se construir novos governos, mas não se pode fundar a anarquia.
Compreendemos bem o ódio em tantos desgraçados que a sociedade tortura, tubercolizando-lhes os corpos e destruindo-lhes os afetos. Logo, porém, que o inferno em que vivem seja iluminado por um ideal, desaparece do seu íntimo o ódio, para dar lugar ao ardente desejo de lutar pelo bem de todos.
É por isso que entre nós não há verdadeiros odientos: há apenas retóricos do ódio. E mesmo estes indivíduos procedem como o poeta que, sendo um pai de família exemplar e pacífico, canta o ódio e prega a destruição, porque encontra nisso a emoção para fazer versos bons... Ou maus. Falam do ódio, é certo; mas o seu ódio é feito de amor.
Eu amo-os porque os compreendo. Ainda que falem mal de mim.
 
Por Errico Malatesta, retirado do periódico anarquista ‘A Plebe’ (São Paulo), 27 de maio de 1922, número 182, página 2.

Sobre as eleições

Publicamos hoje um artigo clássico do anarquista espanhol Manuel Peres Fernandez, que além de ter atuado na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), também militou durante muitos anos no Brasil (Rio de Janeiro), participando do coletivo que produziu o periódico ‘Ação Direta’ (1946-1958). O tema desse texto aborda a questão das eleições, muito propicio para esse momento que estamos vivendo. Leiam & Reflitam & Comentem !!!

TRABALHADOR

Se ainda confias no voto para dar solução aos teus problemas, escuta um momento a palavra veemente da História

MANOEL PERES

            Mais uma vez, os políticos de todas as tendências, com a sua enorme bagagem cheia de promessas demagógicas, batem à porta da tua boa fé para solicitar-te o voto que há de conduzi-los aos cargos culminantes do Estado, nos quais, longe de lutarem pelas tuas justas reivindicações, defenderão os interesses supremos do capitalismo.
            E, mais uma vez, amigo trabalhador, sem quereres compreender a força formidável da tua capacidade criadora e construtiva, acudirás à urna e anularás a tua própria personalidade, ao confiares a outro homem a solução dos teus problemas angustiosos.
           
Escute produtor:

            É, tu que, com gigantesco impulso, moves a alavanca potente do progresso humano. És tu que, construindo cidades e palácios maravilhosos, vives num miserável barracão do morro ou no triste quartinho de uma casa de cômodos vendo os teus filhinhos definhando lentamente com o organismo minado pelo vírus terrível da tuberculose... És tu que desces ao fundo das minas para arrancar as entranhas da terra os ricos minerais que, transformados em máquinas e instrumentos de trabalho, contribuem para o desenvolvimento das indústrias, das ciências, das artes e de todas as atividades indispensáveis à existência do homem. E és tu, finalmente, quem, como suprema ironia, colocando pedra sobre pedra, constrói estatuas gigantescas simbolizando a liberdade, como a que existe à entrada do porto de New York, o que não impede que continues submetido à mais terrível escravidão.       
           
            Como é grande o Brasil

            Muitos trabalhadores não querem estudar os seus próprios problemas, confiando ingenuamente nos líderes, que afirmam demagogicamente: “Eu pensarei por ti e defenderei os teus interesses...” e essa confiança leva-os ao extremo de não acompanharem a evolução humana e ignoram as próprias possibilidades do seu país de origem.
            O Brasil, amigo trabalhador, é um dos maiores países do mundo: a sua extensão territorial é de 8.514.500 quilômetros quadrados, ou seja, maior que toda a Europa excetuando a Rússia! Para compreenderes a sua grandeza, basta saber que a Espanha, com os seus 504.000 quilômetros quadrados, cabe inteira no Estado de São Paulo...
            Pois bem! O continente europeu, muito menor que o Brasil, com todos os vícios e injustiças do regime capitalista, produz o necessário para alimentar uma população de mais de 500 milhões de habitantes e o Brasil, muito maior que toda Europa reunida, tem pouco mais de 50 milhões de habitantes que, ou comem mal, ou morrem lentamente de fome!
            Temos um litoral imenso, com pesca rica e abundante, rios formidáveis como o Amazonas e o Paraíba, minas de ferro, carvão e outros minerais, jazidas petrolíferas, cachoeiras possantíssimas para fornecerem energia elétrica às nossas indústrias e, finalmente, terras fertilíssimas com variedade de climas e em condições – se forem cultivadas – de produzirem o necessário para alimentar com abundância uma população dez vezes superior à que existe em nosso país! E morremos de fome...!

            A Política não resolve esse problema

            Não, amigo trabalhador, a política não soluciona esse problema angustioso, como não conseguiu solucioná-lo em nenhum país do mundo, e prova disto é que a humanidade vive em guerra permanente, guerra provocada pelo capitalismo para afogar em sangue o grito angustioso dos que morrem lentamente vítimas da injustiça social.
            Há 150 anos, com a derrocada do Feudalismo e a Promulgação dos Direitos do Homem, surgiu no mundo o chamado regime capitalista, ou seja, a chamada organização política dos povos. Se é certo que ao homem foi concedida a liberdade política dando-lhe o direito de escolher ele mesmo os seus representantes, não é menos certo que ele continuou submetido à escravidão econômica, já que o Estado que lhe concedia o direito de votar não lhe dava, de igual forma, os elementos indispensáveis para cobrir as necessidades do lar.
            Durante esses 150 anos, a luta entre o capital e o trabalho foi intensa em todo o mundo, e grandes as tragédias provocadas pela ambição dos dominadores e desespero da classe escravizada.
            Nos períodos eleitorais, todos prometiam uma solução justa para os problemas humanos; os líderes proletários aceitavam a luta política e abandonavam os sindicatos para defenderem no parlamento os interesses de seus irmãos de classe. Triste ilusão. Mesmo sendo honrados, esses trabalhadores ou falhavam e retornavam aos seus sindicatos ou eram absorvidos pelo meio ambiente. O mal não estava nos homens, e sim no sistema social, na deficiente organização econômica do mundo.
            E nessa luta pela conquista do poder político, o proletariado internacional viu como desapareciam, devorados pela ambição e pelo egoísmo de uma existência mais cômoda e feliz, mesmo a custa de vergonhas e claudicações, homens que, nos meios operários eram considerados como valores íntegros e positivos.
            E assim fugiram para sempre absorvidos pelo capitalismo, líderes que na praça pública, pregavam a Revolução Social como única solução para conquistar a felicidade humana entre eles, Clemenceau, Aristide Briand, Pierre Laval, fuzilado como traidor após a libertação da França e muitos outros, como o famoso Alejandro Lerroux na Espanha, o ex-revolucionário Mussolini na Itália e os MacDonald na Inglaterra.
            Os povos não querem, compreender que todos os políticos são iguais, e que, por melhores que sejam as intenções dos candidatos, eles nada podem fazer em seu benefício, porque o mal está na organização social, no próprio Estado, na exploração do homem pelo homem, e na maior de todas as injustiças, a Propriedade Privada.

            A Solução Anarquista

            Mentem, ou desconhecem profundamente as correntes ideológicas, os que afirmam que a Anarquia representa a desordem, o caos e a desorganização social. São ingênuos também os que dizem que este ideal é impraticável porque os povos carecem de educação e cultura para viverem num regime de completa liberdade.
            Se aguardarmos que a humanidade seja na sua totalidade anarquista e tenha cultura suficiente para viver livremente, a escravidão do mundo será permanente porque o capitalismo, bastante inteligente, terá, auxiliado pelo clero, o maior cuidado em impedir essa educação, embrutecendo o cérebro dos trabalhadores.
            O anarquismo não destrói, constrói, quer uma organização social que tenha como base fundamental o trabalho ou uma Sociedade de Produtores Livres. Que isso não é uma doutrina de louco, o prova o fato de terem lutado, propagado e defendido o anarquismo homens de indiscutível valor nas ciências, nas artes, na literatura, etc..
            Anarquistas foram Eliseu Reclus, um dos maiores geógrafos do mundo, Pedro Kropotkin, príncipe e escritor russo, Rodolfo Rocker, uma das maiores mentalidades da Alemanha, Romain Rolland, Miguel Bakunin Luiza Michel, Enrique Malatesta, Sebastião Faure, Pietro Gori, Anselmo Lorenso, Ricardo Mella, Federico Urales, Luiz Fabri, muito outros, verdadeiro orgulho para as ciências e progresso humanos.

            O caso da Espanha

            O proletariado espanhol estava agrupado em sindicatos que atuavam a margem de toda influência política e eram verdadeiros centro de educação social. Nele, os trabalhadores analisavam os seus problemas, entre estes, as formas de organizar a produção, a distribuição e o consumo pensando na transformação social, que o próprio capitalismo reconhece ser inevitável.
            Essa capacidade revolucionária foi a causa fundamental de que o fatídico Franco não triunfasse rapidamente nas importantes regiões da Catalunha, Levante e Castilla, onde os trabalhadores lutaram com verdadeiro heroísmo.   

            Valor construtivo

            Ao surgir a sublevação franquista, a maioria dos capitalistas da Catalunha, complicados no movimento fugiram para o exterior abandonando indústrias e fábricas.
            Um proletariado inculto, educado no ambiente político e sem noção exata dos seus problemas teria sucumbido facilmente vendo descontrolada a produção. Tal não aconteceu na Catalunha onde tudo estava previsto.
            As grandes usinas metalúrgicas, entre elas a Hispano-Suíça, com mais de 800 operários, nomearam imediatamente uma comissão de controle e produção que assumiu a direção das mesmas e foi tão formidável a sua atuação e tão consciente a obra dos trabalhadores que a produção aumentou 45 por cento, o que tornou possível a resistência daquele povo heróico durante três anos.
            Da mesma forma que as indústrias, os transportes e as ferrovias funcionaram normalmente sob o controle direto dos sindicatos, sem que ao povo em armas faltasse o necessário para cobrir as suas necessidades durante a luta contra as hordas fascistas.
            O campo foi coletivizado chegando a produção agrícola ao máximo do seu desenvolvimento, o que demonstra, de forma categórica, que o povo tem capacidade suficiente para reger os seus próprios destinos. Se isso foi possível na Espanha em luta titânica contra o fascismo internacional, mais fácil será quando os povos decidirem libertar-se, em união fraternal, do jugo capitalista.
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            Agora Amigo Trabalhador

            Analisa esses problemas com calma e atenção: medita nas lições da história, no exemplo dos camaradas da Espanha e pensa que, mesmo votando, não conseguirás emancipar-te, porque como afirmavam na Primeira Internacional: “A Emancipação dos Trabalhadores há de ser Obra dos Próprios Trabalhadores.”

Por Manoel Peres, retirado do periódico anarquista ‘Ação Direta’ (Rio de Janeiro), 30 de dezembro de 1946, número 28, ano1, página 1.