Segue abaixo três artigos de José Oiticica: Contra o Sectarismo (1929), O Espírito da Ação Direta (1929) e Federação Anarquista Brasileira (1932). Artigos publicados originalmente nos jornais Ação Direta (os dois primeiros) e A Plebe, textos que tem como princípio a solidariedade entre anarquistas e o fortalecimento do movimento anarquista sem deixar de abandonar as lutas sociais. Vale a leitura e a reflexão.
Contra o Sectarismo
O espírito anárquico é essencialmente avesso a quaisquer fanatismos. Sendo ânsia de liberdade, não pode querer dogmas, nem disciplinas, nem mandamentos humanos ou divinos e, muito menos, inquisições, santos-ofícios, índices e autos-de-fé. Pregando o trabalho livre, o pensamento livre, o amor livre, a ação livre, não aceita nenhuma limitação às faculdades intelectuais ou emotivas, nem reconhece bitolas, cremalheiras, pautas, à exteriorização de idéias ou sentimentos. Só o indivíduo tem o direito de dirigir seu raciocínio, regular sua linguagem, enfrentar seu estilo, moderar seu juízo, orientar sua ação.
O anarquismo combate a todo transe o despotismo de qualquer feição, o feitorismo de toda casta, tudo quanto lembre mandonismo, chefia, canga, subserviência, dominação física, mental ou moral. Assim, repele o regime carcerário do capitalismo, condena as fábricas de doutores, padres, militares, homens vazados num molde único, manequins talhados num só modelo, manipanços cujo enchimento é a mesma palha seca. Só o indivíduo conhece os seus caminhos. Impor, ao que pende para o norte, a marcha para leste, é roubar-lhe o destino, a vida, a personalidade.
Esses princípios, nós, anarquistas, aplicamo-los rigorosamente na luta pela emancipação dos homens. E, dizendo "dos homens", firo um ponto essencial do anarquismo. O anarquismo não visa apenas a emancipar os trabalhadores, pretende emancipar os homens. Seu problema é muito mais vasto que o dos políticos ou socialistas de qualquer feição. Acima da mera emancipação econômica, está certamente a emancipação moral e mental. Além do trabalho livre, está o pensamento livre e a ação livre.
Libertar os homens do patrão é muito, mas não é tudo. Cumpre arrancá-lo à tutela dos guias, políticos ou religiosos, e à tirania das "morais", criações de opressores para fanatizar escravos. Destarte, não compreendemos um revolucionário cuja ação promana de uma servidão. Como instituir um regime livre se não nos desvencilhamos das algemas tradicionais? Como pretender uma vida livre, se vivemos impondo regras e ouvindo ordens? Como desejar o homem "pôr si", habituando-nos, a nós e aos outros, a disciplinas vexatórias, censuras obsoletas e punições degradantes?
Mal compenetrados dessa concepção de liberdade, vários anarquistas lamentam as divergências de atuação entre anarquistas. Pior ainda, lêem-se freqüentemente acusações de anarquistas-individualistas a anarquistas-comunistas, de anarco-sindicalistas e extra-sindicalistas, etc., etc. Todos esses ataques e lamentações revelam a tendência sectarista milenarmente entranhada nos homens. Pôr mais que estudemos, aprendamos, eduquemos o espírito, a pressão tradicional é tão forte, o meio ambiente, todo dogmático, registra, engaiolante, é tão rígido, que dificilmente conseguimos nos safar dessas determinantes poderosas.
Pessoalmente, ao contrário, vejo nessas várias tendências anárquicas o melhor sinal de vida do anarquismo. Todos os homens não podem ver as coisas do mesmo modo, nem resolver os problemas pelo mesmo processo. A transformação social é um problema com soluções múltiplas. Nós, anarquistas, apresentamos a nossa. Porém, não a apresentamos do mesmo modo. A beleza da nossa concepção e a superioridade do nosso método estão positivamente nessa multiplicidade de meios, todos conducentes a um mesmo fim. Seja, pois, cada tendência livre na execução do seu modo de entender a solução final. Todas as águas afluentes irão dar na mesma foz.
O verdadeiro anarquista, penso eu, aquele que se libertou totalmente do preconceito sectarista, colabora em todos os grupos, atua em qualquer tendência. Mais ainda, coopera com os não-anarquistas onde quer que a ação deles incremente a oposição revolucionária. Assim, é anticlerical com os anticlericais; é democrático na defesa dos princípios liberais contra os reacionários; está com os bolchevistas, sempre que estes reivindiquem direitos, reforça a ala antimilitarista, ainda que os antimilitaristas sejam burgueses; colabora com a escola moderna racionalista, conquanto não seja senão reformista; anima os teósofos na propaganda fraternista, os vegetarianos na extirpação dos vícios, o próprio Estado Liberal na sua luta contra o imperialismo vaticanista.
Não proceder assim, seria confinar-se ao sectarismo e negar, nos atos, a doutrina anarquista, essencialmente anti-sectária.10.01.1929
José Oiticica - Publicado originalmente no jornal carioca Ação Direta, em 10.01.1929, e republicado em: Oiticica, J. Ação Direta – Rio de Janeiro; Germinal, 1970. p. 96 – 98.
O Espírito da Ação Direta
Num dos últimos números do jornal anarquista “l’em dehors”, de Armand, em uma fórmula preciosa de onde se resume quanto escrevi no meu artigo Contra o sectarismo. A fórmula está subordinada ao título O consenso anarquista e enfeixa alguns conceitos segundo os quais podem, perfeitamente bem, manter-se acordo, entendimento, boa harmonia, consenso entre os muitos modos de ver a questão social sob o aspecto ácrata.
Eis a fórmula: “Não caminhar, obrigatoriamente, a passo igual, nem regular, constrangidamente, o teu passo pelo passo do isolado que corre adiante de ti, ou da associação que segue atrás de ti. A cada qual seu ritmo, suas afinidades; a cada qual segundo os termos do contrato de marcha, que tenha livremente assinado. Não se envolver com a cadência do vizinho! Não intervir no andamento do grupo ao lado; não resmungar contra as evoluções daqueles que preferem os margeamentos à estrada larga, os sombreados às clareiras, e vice-versa. Caminho livre a todos os gêneros de marcha: passo de corrida, passo acelerado, passo de passeio, passo sem destino. É esse o espírito do consenso anarquista”.
Perfeitamente bem. O maior impeço tem sido sempre esse de querer fazer predominar sua opinião, seu modo de ver, sua vontade, sobre a do vizinho, do camarada, do grupo, do sindicato. Esse espírito de independência, aliado ao espírito de retraimento (independência de sua opinião e dos seus atos, retraimento ante a opinião e os atos do vizinho), eis a força real do anarquismo, o seu traço distintivo, o aspecto que o separa fundamentalmente de outros credos revolucionários, calcados na disciplina, no programa único, nos batalhões de ferro, no passo de soldado, em quanto figurino dispersonalizante o vicio burguês inventa e propõe às massas descontentes.
Esta legislação social não se limita hoje a um só país, mas ganha terreno em todos os países e encontra sua expressão na atividade da Oficina Internacional de Trabalho de Genebra. As insignificantes melhorias recomendadas em certas cousas para algumas categorias de trabalhadores pelos acordos da O.I.T., ratificados pelos governos, não podem ser comparadas com os incompreensíveis prejuízos produzidos no domínio moral com o aniquilamento do espírito revolucionário, que é a melhor herança das revoluções passadas e pertence aos mais sagrados bens da classe oprimida.
Por louvável que seja o esforço por um melhoramento geral da situação do proletariado de todos os países – como, por exemplo, a aplicação internacional de uma jornada de trabalho única e um salário efetivo, igual para os obreiros do mundo inteiro – esforço que é aprovado e apoiado pelo Congresso da A.I.T., Associação Internacional dos Trabalhadores, de orientação anarco-sindicalista – não se deve, por outro lado deixar de indicar que a legislação nacional e internacional é um caminho que não se pode conduzir-nos a esse fim; essa legislação é só o refúgio de um movimento obreiro espiritualmente desagregado.
Isso nos faculta a liberdade de nortear a nossa atividade para onde mais sentirmos penderem o nosso espírito e os nossos gostos. Um compraz-se no combate ao clericalismo; outro deseja dedicar-se a edição de panfletos, folhetos, revistas; outro deseja dedicar-se a o anti-militarismo; este revela-se naturista apaixonado; aquele sente-se organizador de sindicatos e grupos; esse outro consagra-se a educação racionalista, etc., etc. E em cada um desses departamentos da atividade acrática, nem todos sentem a luta do mesmo modo: um é de natureza moderado, persuasivo, discutidor; o outro é violento, arrebatado, mais ação que palavras, mais fatos que discursos.
Com tentar reger esses temperamentos diversíssimos pelo mesmo compasso? Como querer julgar nosso vizinho por nós mesmos? Como sonhar um padrão, um metro, um código para essa espontânea manifestação da revolta e esse fremente treinamento, rumo à emancipação?
Devemos, pois, na avaliação do trabalho de cada qual, examinar os resultados e concluir se eles são parcos ou nulos, não pela condenação ou menosprezo do camarada, mas pela deficiência dos seus meios e métodos. A experiência de uns será vantajosa para os outros, e evitar-se-ão essas estreitas dissidências, fruto constante da intolerância, restos de um autoritarismo secular, que a tradição, mau-grado nosso, o meio capitalista, infundem ainda ou conservam em nosso subconsciente.
A fórmula de E. Armand deve gravar-se na memória de todos os anarquistas e ter lição constante para entendimento mútuo e harmonia entre militantes.
José Oiticica - Publicado originalmente no jornal carioca Ação Direta, em 15/02/1929, e republicado em: Oiticica, J. Ação Direta – Rio de Janeiro; Germinal, 1970. p. 99 – 101.
Federação Anarquista Brasileira
O grande camarada Nestor Makhno, logo no começo do seu admirável livro sobre a Revolução Russa na Ucrânia, primeiro de uma série acerca do formidável movimento por ele chefiado, conta-nos os seus primeiros planos revolucionários ao sair da prisão, em 2 de março de 1917.
Diz ele: “Eu estava vivamente preocupado com a insuficiência de minha educação teórica e minha ignorância dos dados positivos que me teriam permitido resolver os problemas sociais e políticos, segundo o modo de ver anárquico. Eu sabia, aliás, que tal sucedia, nove vezes em dez, nos meios anarquistas e que esse triste estado de coisas decorria da falta, entre nós, de toda a organização e também de escolas anarquistas. Não sentia menos profundamente essa lacuna, nem cessava de sofrer com isso. Só me consolava e dava coragem a esperança de que tal estado de coisas não perduraria, eu estava, com efeito, persuadido que o trabalho ao ar livre, dentro de um movimento revolucionário intenso, demonstraria, com evidencia, aos anarquistas a necessidade de criar uma organização poderosa, capaz de levar a peleja todas as forças anarquistas e organizar um movimento de conjunto, coerente e consciente do fim a atingir”.
E adiante volta ao assunto: “A fragmentação dos grupos anarquistas existente antes da Revolução, não me satisfazia. Uma tática não baseada na coordenação está condenada a permanecer estéril, dizia eu. É impotente para agrupar as forças dos trabalhadores correlativamente ao entusiasmo das grandes massas revolucionarias no momento dos atos destruidores, da Revolução. Nessas condições, os anarquistas partidários de tal modo de ação devem ou separar-se dos acontecimentos e imobilizar-se na propaganda sectária, ou então arrastar-se na cauda dos acontecimentos, não assumindo mais papeis secundários, trabalhando assim em proveito de seus adversários políticos”. Essa necessidade, imprescindível de uma organização dos anarquistas sentiram-na e sentem-na, mais que todos, os nossos incansáveis companheiros da “Federação Anarquista Ibérica”, na Espanha.
No seu órgão oficial “El Libertario” de 24 de setembro último, publica José Bonel um artigo intitulado: “Necessidade da organização anarquista”. O artigo refere-se ao dissídio entre anarquistas individualistas e anarquistas organizadores, mostrando a insubsistência do individualismo no embate atual: “A necessidade da organização impõem-se, diz ele. Nada mais lógico e justo, quando há muitos que desejam a mesma coisa, que procurem acordar-se relativamente ao modo de alcançá-la, sobretudo, quando essa coisa está sequestrada pelo Estado, e dispõe de uma série de instrumentos tirânicos e coercitivos, protetores seus. Hoje, dada a situação que atravessamos não é só dever dos anarquistas pensar na organização, mas também cumpre-lhes estruturá-la de maneira que, sem deixar de ser anarquista, mais eficaz se mostre”.
Ora, correspondendo a esse anelo, vemos o surpreendente surto da “Federação Anarquista Ibérica” após a destronização de Afonsinho. Só neste ano de 1932, mais de mil associados anarquistas se criaram e aderiram a Federação, adicionando-se a mais de mil outras já formadas o ano passado. De modo que, na Espanha, temos perto de 2500 conjuntos anárquicos articulados num organismo federativo que, sem tirar, a nenhuma das componentes, sua iniciativa, sua liberdade ou seu caráter, as congrega, informa e ilustra para o ataque decisivo.
Essa necessidade sinto-a eu e de certo sentem todos o anarquistas do Brasil. Eis porque escrevi aos camaradas da Espanha sobre o desejo nosso de promover a Federação Anarquista Brasileira e pô-la em ligação interna com a F.A.I.. Nesta, é bom notar, já se acha incorporada a “Federação Anarquista Portuguesa”, refundição dos organismos anarquistas de Portugal.
A formidanda atividade revolucionária dos camaradas espanhóis está evidenciando a iniludível alta vantagem de coordenarem-se as forças anárquicas, em que pese ao dissolvente individualismo de alguns camaradas.
Eis porque abro aqui, na “Plebe”, esta questão propondo a exame este para mim relevantissimo tema, o de uma “Federação anarquista Brasileira” que ligue e coordene todos os grupos libertários do Brasil numa ação de conjunto.
Rio – 28-11-932
José Oiticica – publicado originalmente em: A Plebe, São Paulo, 17.12.1932, nº4. p. 3
Saudações do interior! Muito bom o blog. Segue nessa!!!! Abraços Libertários!!!!!!
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