Após longo período sem atualização, retomamos a ativar o nosso
blog. Reiniciamos com a proposta de publicar (ou republicar) textos ácratas
extraídos de antigos jornais anarquistas publicados no Brasil.
Textos retirados de jornais como "A
Terra Livre", "A Guerra
Social", "A Plebe", "A Lanterna", "Ação
Direta", entre outros, visamos com isso divulgar as ideias que os militantes anarquistas
antepassados acreditavam e divulgavam, suas propostas,
denúncias e doutrinas. Iniciamos com artigos de militantes clássicos como
Kropotkin, Faure, Proudhon e Reclus. Além de autores
clássicos, visamos também publicar textos de militantes libertários que atuaram
em território brasileiro. Segue os textos: boa leitura e reflexão !
“A Ordem”
Os
que acusam a anarquia de ser a negação da ordem,
não falam da harmonia do futuro; falam da ordem como ela é concebida na
sociedade atual.
Atualmente,
a ordem – o que eles entendem por ordem – são os nove décimos da humanidade
trabalhando para procurar o luxo, os gozos, a satisfação das paixões mais
execráveis, para um punhado de mandriões.
A
ordem é a privação para estes nove décimos, de tudo que é a condição necessária
de uma vida higiênica, de um desenvolvimento das faculdades intelectuais.
Reduzir nove décimos da humanidade a um estado de bestas de carga, vivendo dia
a dia, sem nunca se atrever a pensar nos gozos dados ao homem pelo estudo das
ciências, pela criação artística – eis a ordem.
A
ordem é a fome e a miséria tornadas em estado normal da sociedade. É o aldeão
irlandês morrendo de fome; é o aldeão dum terço da Rússia morrendo de difteria,
de tifo, de penúria, no meio dos montões de cereais que vão para o estrangeiro.
É o povo da Itália deixando o seu campo luxuriante, para vaguear pela Europa,
procurando um buraco onde vegete na miséria. É a terra roubada ao camponês,
para criação de gado, que servirá para alimentar os ricos; é a terra deixada
inculta, de preferência a ser restituída para aquele que não pede mais do que
cultivá-la.
A
ordem é a mulher que se vende para dar alimento aos filhos, é a criança
reduzida a ser encerrada numa fábrica, ou a morrer de inanição, é o operário
reduzido ao estado de máquina.
É o
fantasma do operário revoltado às portas dos ricos, o fantasma do povo
revoltado às portas dos governantes.
A
ordem é a minoria ínfima, subida às cadeiras governamentais, que se impõe por
esta razão à maioria e que educa os filhos para exercerem mais tarde as mesmas
funções, a fim de manter os mesmos privilégios, pela astúcia, pela corrupção,
pela força, pelo morticínio.
A
ordem é a guerra constante do homem ao homem, de ofício à ofício, de classe à
classe, de nação à nação.
É o
canhão que não cessa de roncar na Europa, é a devastação dos campos, o
sacrifício de gerações inteiras nos campos de batalha, a destruição em um ano
de riquezas acumuladas em séculos de trabalho rude.
A
ordem é a servidão, o pensamento acorrentado, o envilecimento da raça humana,
mantido pelo ferro e pelo chicote. É a morte repentina, pelo grisu, de centenas
de mineiros despedaçados ou enterrados todos os anos pela cobiça dos patrões, e
metralhados, desde que se atrevam a queixar-se.
A
ordem, enfim, é o afogamento em sangue da Comuna de Paris. É a morte de trinta
e cinco mil homens, mulheres e crianças, maltratados, enterrados com cal viva
nas ruas de Paris.
É o
destino da mocidade russa, nas prisões, enterrada no gelo da Sibéria e onde os
melhores, os mais puros, os mais dedicados, morrem enforcados.
Eis
a ordem.
Piotr Kropotkin
Retirado do periódico anarquista ‘A Terra Livre’ (São Paulo), 12 de Abril de 1906,
número 7, página 1, & também do ‘Boletim da Federação Operária do Estado
Rio de Janeiro’, Setembro de 1921, número 7, página 3. Publicado
originalmente no livro ‘Palavras De Um Revoltado’ (‘Paroles D’Un Révolté’), 1885.
O que nós queremos
Milhões
de seres humanos trabalham dez ou doze horas diárias, em odiosas condições em
troca de um salário insuficiente.
Milhões
de velhos que, durante uns vinte e cinco, trinta e quarenta anos laboriosamente
têm formado a riqueza pública e edificado fortunas particulares, estendem as
mãos calosas e descarnadas aos transeuntes, ou solicitam a sua entrada para os
asilos.
Milhões
de crianças encantadoras e inocentes que precisam do alimento e da cultura
indispensáveis.
Milhões
de mulheres belas feitas para provocar e gozar o amor procuram no tráfico
vergonhoso da sua carne o pão que lhes é necessário.
Milhões
de seres vigorosos e belos em vão procuram trabalho e, sem o encontrar, morrem
na miséria.
Milhões
de jovens são arrancados ao campo, à oficina, à família e aos seus amores, na
previsão de matanças incompreensíveis e criminosas.
Milhões
de desgraçados aquém a miséria, a ignorância e a opressão forçam fatalmente a
infringir a lei feita contra eles gemem nos cárceres e nos presídios.
Toda a pessoa inteligente e de coração deve
querer que isto termine.
Intrigantes
e ambiciosos, investidos de um mandato pela candidez popular, farsantes e
imbecis revestidos de uma função pela complacência governamental, saqueiam, as
mãos cheias e sujas, o tesouro público alimentado pelos trabalhadores.
Os
ministros de um Deus ridículo apóiam sobre o abandono dos dogmas e a metafísica
religiosa, o domínio de uma classe e os privilégios que a acompanham.
Na
sua ignorância e no seu hábito de servidão, as multidões aclamam os que as
esmagam e exploram; inclinam-se respeitosas ante os grandes que as desprezam ou
as adulam e seguem passivamente os conselhos dos anestesiadores e dos que
pregam a resignação.
Todos os espíritos emancipados e todos os
corações generosos desejam que isto tenha um fim.
Viver,
ser ditosos, ser livres... Eis aqui o que
nós queremos.
Gozar
o bem estar físico assegurado por uma alimentação sã e abundante, boa roupa e
uma habitação confortável.
Cultivar
a nossa inteligência, desenvolver os nossos conhecimentos, enriquecer o nosso
cérebro com novas verdades, regozijar os nossos olhos na contemplação das
grandes obras de arte e da natureza, deliciar os nossos ouvidos com o encanto
das puras harmonias, estudar com espírito independente os problemas da vida,
passear livremente a nossa curiosidade através do mundo das realidades e das
observações, pensar o que nos inspira a nossa razão ilustrada e confiar a nossa
intrépida língua a expressão sincera do pensamento.
Eis aqui o que nós queremos!
E
queremos também fundar o mais breve possível um meio social favorável ao
desenvolvimento integral da personalidade humana, pelo livre exercício das
forças que em nós se agitam e das paixões que nos movem, pelo desenvolvimento
moral das nossas afinidades, pela nobre irradiação das nossas simpatias.
É
necessário pedir à vida todas as alegrias que ela contém.
Eu
sei bem que querer e proclamar isto é expormo-nos a ser tratados como
malfeitores.
Que
importa!
Propagadores
voluntários de uma ideia justa e bela
consideramos sem desfalecimentos as consequências da batalha, sendo para nós
mais penoso ficar inativos no seio da peleja que correr os riscos próprios da
luta.
Se é
ser malfeitor querer o fim da miséria, da ignorância e das guerras; se é ser
malfeitor preparar o advento de uma sociedade de concórdia, de saber, de
abundância e de harmonia, nós somos malfeitores, aceitamos o epíteto e
reivindicamo-lo com orgulhosa dignidade.
Abandonem
os adversários a esperança de nos desarmar; não somos daqueles a quem se
intimida nem a quem se corrompe.
O
espírito de independência desenvolve-se e fortifica-se no seio das novas
gerações; um sopro de emancipação começa a dar vida a este deserto. O escravo
quer conquistar o seu lugar de homem livre. Certamente queremos ser ditosos,
mas, pois que é possível, queremos que o sejam todos, porque não poderíamos rir
quando os outros choram, cantar quando os outros gemem.
Eis aqui o que nós queremos, com todo o
poder da nossa firmeza, com toda a energia da nossa perseverança.
Também
o que queres, tu, que me lês? Queres viver, ser ditoso, ser livre? Queres que
cada um seja livre, ditoso e que viva?... Sim? – Pois bem, depende de ti, de
mim, de todos nós, que esta magnífica aspiração se converta em realidade. Se o
queres resoluta e lealmente, despede-te, abandona, se preciso for, família,
amizade, posições; foge da atmosfera pestilenta das igrejas, dos quartéis, dos
parlamentos, e vem, vem combater livremente no meio dos homens livres.
Sébastien
Faure
Retirado do periódico anarquista ‘A Guerra Social’ (Rio de Janeiro), 14 de Setembro
de 1912, número 27, página 3, & também do periódico anarquista ‘A
Revolta!’ (Santos), 14 de
Novembro de 1913, número 5, página 1.
O que não queremos
Não
queremos Estado porque o Estado, pseudo-mandatário é servidor do povo, por
procuração geral e ilimitada dos eleitores, mal nasce logo cria para si um
interesse a parte, muitas vezes contrário ao interesse do povo; porque, servindo
esse interesse, faz dos funcionários públicos criaturas suas, resultando daqui
o nepotismo, a corrupção, e pouco a pouco a formação duma casta oficial, tão
inimiga do trabalho como da liberdade...
Não
queremos Estado porque o Estado, para engrandecer o seu poder extrapopular,
tende a multiplicar indefinidamente os seus empregados; depois, para se os
prender cada vez mais, a aumentar-lhes continuamente os vencimentos...
Não
queremos Estado porque, quando o imposto já não basta as suas dilapidações, ao
desempenho dos seus favores e sinecuras, o Estado recorre aos empréstimos e
desfalques, e depois de ter empalmado o dinheiro alheio, ainda acha meio de
obter aplauso para as suas rapinas...
Não
queremos Estado, porque desejaríamos limpar a sociedade de tudo o que se chama
bancarroteiros, usurários, abutres, agiotas, ladrões, gatunos, estelionatários,
concessionários, falsários, moedeiros falsos, prestímanos, parasitas,
hipócritas e homens de Estado; porque a nosso ver todos os homens de Estado se
assemelham e todos são, com gradações, comedores de carne humana, no dizer
Catão.
Pierre-Joseph Proudhon
Retirado do periódico anarquista ‘A Guerra Social’ (Rio de Janeiro), 14 de Setembro
de 1912, número 27, página 3
Élisée
Reclus Fala aos Jovens
Queridos camaradas:
Temos, em geral, o costume de exagerar tanto nossa força quanto nossa debilidade; assim, durante
épocas revolucionárias, nos parece que o menor de nossos atos deva ter consequências incalculáveis e, ao contrário, em
certo marasmo, toda a nossa vida, ainda que consagrada inteiramente ao
trabalho, nos parece infecunda e inútil.
Que devemos fazer
então para mantermo-nos em estado de vigor intelectual, de atividade moral e de
fé no bom combate?
Dirigi-vos a mim, porque supondes que tenho
experiência dos homens e das coisas.
Pois bem, em minha
qualidade de ancião, me dirijo aos jovens para dizer-lhes:
Fora as
querelas e personalismos. Escutai os argumentos contrários depois de haver
expostos os vossos; sabei calar e refletir; não procureis ter razão em
detrimento da vossa sinceridade.
Estudai com discernimento e perseverança. O
entusiasmo e a abnegação, ainda que até a morte, não são o único meio de servir
a causa. É fácil dar a vida; nem sempre fácil conduzirmo-nos de modo que nossa
vida sirva de exemplo. O revolucionário consciente não é somente homem de
sentimento, é também homem de raciocínio, cujos esforços totais em procura de
maior justiça e solidariedade se apóiam sobre conhecimentos exatos e sintéticos
de história, sociologia, biologia. É o que pode, por assim dizer, incorporar suas ideias pessoais
ao conjunto genérico das ciências humanas e enfrentar a luta sustentado pela
imensa força que esgotará em seus conhecimentos.
Evitai as classificações; acima de partidos e
pátrias, de proclamar-vos russo, polaco ou eslavo, sede homens ávidos de
conhecer a verdade, despojados de todo pensamento de interesse, de toda ideia de especulação ante chineses, africanos ou
europeus; o patriota chega a detestar o estrangeiro, a perder o sentimento de
justiça que alimenta seu mais puro entusiasmo.
Não vos atreleis a patrão, chefe ou apostolo
cuja linguagem seja considerada palavra do Evangelho; fugi dos ídolos e não
busqueis mais que a verdade de quando diga o amigo mais querido ou do professor
mais sábio. Se, escutando-o conservais alguma
dúvida, buscai em vossa consciência e recomeçai o exame para julgar em última
instância.
Refugai, pois, toda autoridade, para
cingir-vos ao respeito profundo de uma convicção sincera, vivei a própria vida,
porem reconhecei a cada um inteira liberdade de viver a própria.
Se vós lançais a luta para vos sacrificardes
em defesa dos humilhados e ofendidos, em boa hora,
companheiros, afrontai nobremente a morte. Se preferes o lento e paciente
trabalho ansiando por melhor provir, melhor ainda convertei-vos no objeto de
cada um dos instantes de vida generosa. Porém, se escolheis a pobreza entre os
pobres, em completa solidariedade com os que sofrem, que vossa existência
irradie a claridade benfeitora, no exemplo perfeito e no fecundo ensinamento.
Saúde,
camaradas!
Retirado
do periódico anarquista Ação Direta (Rio de Janeiro) –– Outubro e Novembro de
1952, nº83, ano 6, p. 3.